segunda-feira, 20 de junho de 2016

Nós e nossos corpos dóceis*

Quando li a notícia, fiquei chocada. Houve quem me perguntasse em qual país isso aconteceu. Embasbacada, respondi que a menina havia sido estuprada no Rio de Janeiro. O almoço seguiu silencioso. Reflexiva, percebi que a vida das mulheres não vale nada. Nada mesmo. Somos formigas sendo esmagadas em um país de machões. Somos chama que se apaga com o sopro da violência. Vivemos o reflexo de uma sociedade injusta e machista. E não sabemos até onde isso vai chegar.

Foucault aborda o conceito de ‘corpos dóceis’, que é quando o corpo passa a ser objeto e alvo de poder, um“corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”¹. Através da manipulação daquele corpo, ele se torna dócil, podendo ser transformado e aperfeiçoado. O corpo torna-se um objeto social no qual estão impostas as limitações, as proibições e as obrigações. A disciplina sobre o corpo permite o controle minucioso das operações, promovendo a relação mecânica do poder.
Essa noção de ‘corpo dócil’ está enraizada em nossa sociedade. Seja na fabricação de modelos de beleza, seja para a produção de mão de obra eficiente. A disciplina sobre o corpo vem produzindo, ao longo das décadas, problemas sociais que hoje aprofundam-se com o discurso do ódio e a promoção da violência. A onda do “politicamente correto” acabou, dando espaço as mais diversas manifestações que, em nome da liberdade individual, convocam fiéis dos mais radicais e disseminam seu discurso hostil. Me parece que ser machista está na moda, ser racista está na moda, ser homofóbico está na moda, tudo isso aclamado e corroborado por Deus em defesa da família, da moral e dos bons costumes.

Mas isso não me parece certo.

Historicamente, as mulheres vêm sofrendo as consequências da disciplina sobre os corpos. O corpo da mulher representa um modelo de sociedade onde tudo aquilo que não se encaixa no modelo idealizado deve ser combatido ferrenhamente. Não é à toa que vivemos um momento no qual o discurso do ódio se alastra com a velocidade de um clique, um momento em que a violência toma conta das ruas e dos lares, um momento onde não há respeito sobre si, muito menos sobre o outro. Tempos sombrios de intolerância generalizada.
Nossos corpos devem ser submissos, devemos ser dóceis, boas esposas e mães zelosas. Devemos cuidar de nossa aparência, aceitar a violência caladas, de preferência, acostumar-nos a ela. Devemos trabalhar o dia todo e chegar em casa com disposição para cuidar dos filhos, da comida, da louça, das roupas, dos temas de casa, do banho, das contas, sem reclamar, sem irritação, sem cansar, sem desistir, pois isso tudo é normal e sempre foi assim. Devemos agradar nossos maridos, satisfazê-los sexualmente, sempre sexy sem ser vulgar, mas apenas entre quatro paredes, pois mulher tem que ser puta na cama e não na fama. Se apanhamos, a culpa é nossa; se somos demitidas, a culpa é nossa; se nossos filhos são ladrões, drogados ou traficantes, a culpa é nossa; se somos estupradas, a culpa é nossa; se somos mães solteiras, a culpa é nossa; se somos assassinadas, a culpa é nossa; de novo e de novo outra vez. Se somos estupradas diversas vezes por diferentes homens durante vários dias, a culpa certamente é nossa. Pois merecemos. Nós pedimos. A culpa é sempre nossa. E não somos vítimas. Apenas nos fazemos de coitadas.

Esse é o peso que nossos corpos dóceis devem suportar. Todos os dias. Até quando?


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Referências
¹FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Trad: Ligia M. Podeé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 125.

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*Este texto foi publicado originalmente em Frida Diria, em 10 de junho de 2016.